Assistencialismo perdurou por quase um século e só perdeu força quando a Constituição de 1988 tornou o segmento um dever do Estado e fortaleceu seu caráter educativo
Gustavo Heidrich
A biblioteca do escritor e professor Mário de Andrade, na segunda metade da década de 1930, guardava uma coleção que pareceria estranha para quem visitasse a casa do intelectual das letras naquela época: um acervo com mais de mil desenhos produzidos por crianças.O educador começou a coleção quando foi responsável pela criação de parques infantis na cidade de São Paulo em 1935, ocasião em que ocupou o cargo de chefe do Departamento de Cultura da prefeitura da capital paulista. Neles, o escritor promovia concursos de desenhos e incentivava outras atividades artísticas entre os pequenos. "Mário de Andrade foi um dos primeiros pensadores da Educação Infantil no país a acreditar na valorização das produções das crianças e a colocar a atividade artística como um dos fundamentos desse segmento”, explica a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Márcia Gobbi. Apesar do interesse e esforço isolados de educadores como Mário de Andrade, a Educação Infantil levou muito tempo para se desvencilhar do caráter que a pontuou desde o início: a assistência social. Essa demora foi de quase um século – o primeiro jardim da infância foi inaugurado em 1895, em São Paulo. Mudanças estruturais começaram somente na década de 1970, quando o processo de urbanização e a inserção da mulher no mercado de trabalho levaram a um aumento significativo na demanda por vagas em escolas para as crianças de 0 a 6 anos. Como não havia políticas bem definidas para o segmento, a expansão de instituições de Educação Infantil nessa época foi desordenada e gerou precarização no atendimento, feito, em geral, por profissionais sem nenhuma formação pedagógica. Em 1975, o Ministério da Educação começou a assumir responsabilidades ao criar a Coordenação de Educação Pré-Escolar para atendimento de crianças de 4 a 6 anos. Ainda assim, o governo continuou promovendo, em paralelo, políticas públicas descoladas da Educação. Em 1977, foi criada, no Ministério da Previdência e Assistência Social, a Legião Brasileira de Assistência (LBA), com o objetivo de coordenar o serviço de diversas instituições independentes que historicamente eram responsáveis pelo atendimento às crianças de 0 a 6 anos. Essas instituições eram divididas em: comunitárias, localizadas e mantidas por associações e agremiações de bairros; confessionais, mantidas por instituições religiosas; e filantrópicas, relacionadas a organizações beneficentes. A LBA foi extinta em 1995, mas o Governo Federal continuou a repassar recursos para as creches por meio da assistência social. Nesse mesmo período, se intensificou uma separação entre o atendimento nas creches, de 0 a 3 anos, visto como algo destinado às camadas populares, e a pré-escola, segmento voltado para as classes média e alta. “Essa é uma separação que funda a Educação Infantil no país. As creches, totalmente financiadas pela assistência social, eram vistas como uma alternativa de subsistência para crianças mais pobres e estavam orientadas para cuidados em relação à saúde, higiene e alimentação. Já a pré-escola passou a ser encarada como a porta de entrada das crianças ricas na Educação”, analisa a ex-coordenadora de Educação Infantil do MEC, Karina Rizek.
Direito da criança, dever do Estado
O marco que rompeu essa tradição no país foi a Constituição de 1988, que determinou a Educação Infantil como dever do Estado brasileiro. “Foi a partir daí que a Educação na creche e na pré-escola passou a ser vista como um direito da criança, facultativo à família, e não como direito apenas da mãe trabalhadora. Com isso, os profissionais de Educação Infantil ganharam mais legitimidade e a Educação Infantil passou a ser objeto de planejamento, legislação e de políticas sociais e educacionais”, explica a coordenadora pedagógica da Fundação Victor Civita, Regina Scarpa. Dois anos depois, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reafirmou os direitos constitucionais em relação à Educação Infantil. Em 1994, o MEC publicou o documento Política Nacional de Educação Infantil que estabeleceu metas como a expansão de vagas e políticas de melhoria da qualidade no atendimento às crianças, entre elas a necessidade de qualificação dos profissionais, que resultou no documento Por uma política de formação do profissional de Educação Infantil.Em 1996, com a promulgação da Emenda Constitucional que cria a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a Educação Infantil passou a ser a primeira etapa da Educação Básica, integrando-se aos ensinos Fundamental e Médio. “Só então a Educação Infantil ganhou uma dimensão mais ampla dentro do sistema educacional e a criança foi vista como alguém capaz de criar e estabelecer relações, um ser sócio-histórico, produtor de cultura e inserido nela e que, portanto, não precisa apenas de cuidado, mas está preparado para a Educação”, diz Beatriz Ferraz, coordenadora pedagógica do Centro de Educação e Documentação para Ação Comunitária (CEDAC), em São Paulo. O artigo 62 da LDB foi pioneiro ao estabelecer a necessidade de formação para o profissional da Educação Infantil. Segundo a lei, a formação do educador desse segmento deve ser “em nível superior, admitindo-se, como formação mínima, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal”. O texto reafirma, também, a responsabilidade constitucional dos municípios na oferta de Educação Infantil, contando com a assistência técnica e financeira da União e dos estados. Com o objetivo de oferecer parâmetros para a manutenção e a criação de novas instituições de Educação Infantil, o MEC publicou, em 1998, o documento Subsídios para credenciamento e o funcionamento das instituições de Educação Infantil. No mesmo ano, visando a elaboração de currículos de Educação Infantil, cuja responsabilidade foi delegada pela LDB a cada instituição e seus professores, o ministério editou o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, como parte dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Um ano depois, em 1999, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Esses documentos são, hoje, os principais instrumentos para elaboração e avaliação das propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil do país.
Referencias
Revista Nova Escola, Março 2010
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